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quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Emergência e Percepção de Novos Valores na Juventude (3)

Hilário Dick
Maio de 68
Para quem pensa em juventude e em emergência e percepção de valores, não pode esquecer que estamos vivendo, em 2008, 40 anos da memória do Maio de 68. Mais do que um maio francês, ele foi um maio mundial. Embora o “Maio de 68” não tenha sido um discurso somente de jovens, ele precisa, ainda, ser lido, especialmente pelo papel que os/as jovens exerceram nele. Apesar de tantas análises e revisões, o que foi, de fato, o Maio de 68[7]? Não é por nada que Zuenir Ventura, anos atrás, escreveu “1968 – o ano que não terminou”[8]. Há 40 anos atrás, quando os sessentões de hoje eram adolescentes (pouco mais ou pouco menos), qual foi o discurso juvenil daqueles anos efervescentes? Não há dúvida de que se não formos encantados pela juventude, isto é, encantados por nós mesmos, construindo a história e a novidade, as “sementes ocultas do Verbo” vão permanecer não só indecifradas, mas ridículas[9].

Entre as muitas perguntas que podemos fazer, uma delas poderia ser a seguinte: o Maio de 68 se explicaria sem tomarmos em conta, por exemplo, o que se fez com a juventude ou com o que os jovens fizeram nos anos de 1920 e 1930 no tempo dos falangistas, dos nazistas e dos fascistas e de outras tantas manifestações juvenis que nem conhecemos? Parece sempre mais evidente que há duas “forças” ou duas “realidades” – com relação ao tratamento que se dá à juventude – que vão-se revezando através da história. Por um lado, por parte do mundo dos adultos, movidos pela tradição, o que vale e o que se implanta, de diferentes formas, para o mundo inquieto da juventude, é a “moratória social”. Esta moratória não foi – como muitas vezes se diz – implantada no tempo da revolução industrial. A revolução industrial somente tornou mais evidente o uso e a sofisticação dela. Trata-se de uma atitude antiga de controlar a juventude, talvez pelo medo da novidade. Por outro lado, por parte do mundo dos jovens, o que procura manifestar-se de diferentes formas, é a “moratória vital”[10], de forma progressivamente sempre mais orgânica e organizada. São duas “energias” em eterno conflito. A velha luta do novo contra o velho, do tradicional contra a evasão, da ordem contra a desordem. Querendo ou não, – mesmo de forma nem sempre hegemônica - o jovem, sempre foi e sempre será a figura de “desordem”, a encarnação do previsto para o imprevisto, do caminho traçado para o caminho inventado, do sabido para o não-sabido.

Para compreender a realidade juvenil é preciso entender os “discursos” que os jovens fazem de diferentes formas: grafites, opiniões, músicas, manifestações de massa, formas de se articularem, vestimentas, modas, maio de 68, concentrações de Woodstock, rebeldias no México e na China, rebeldes sem causa, enfrentamento às autoridades, invasões de Universidades etc. O segredo está em não só estudá-los, mas também de compreendê-los em seus “discursos” e de vê-los como nos podem ajudar na travessia da vida que todos sabem não ser estagnada. É essa que deveria ser, também, a forma de compreender a atitude da sociedade com relação aos jovens. O “discurso” dos jovens e o “discurso” da sociedade ou dos adultos é, muitas vezes, um diálogo de surdos. Na maioria das vezes, por “culpa” dos adultos. Entram em jogo, por isso, os paradigmas que são usados quando se trata de estudar e trabalhar com a juventude.

Paradigmas

Na emergência e na percepção dos valores da juventude entram em jogo paradigmas que decidem nossa maneira de ler, compreender e trabalhar com a juventude. Pode-se dizer, por exemplo, que falar em “protagonismo juvenil” é fazer entrar, no discurso e na prática, especialmente através da educação em seu sentido amplo, não só a determinação política de uma sociedade, mas o “discurso” que se carrega com relação ao segmento juvenil. Dizer, por exemplo, que a democracia só se constrói numa sociedade com indivíduos que sejam “emancipados”, “sujeitos da história”, “empoderados”, isto é, protagonistas, não é um “discurso” inocente. Aliás, nenhum paradigma que se assuma, nesse campo, é sem conseqüências. Mais sério, ainda, torna-se quando chegamos a afirmar que uma juventude só se torna protagonista com organização. O que desejamos dizer com isso? Rubem Alves afirma, ironicamente, num de seus muitos escritos sobre a educação, que “a miséria da educação não aparece onde ela é pior”. “Sua miséria se revela justamente onde ela é excelente. Pois dizemos que ela (a educação) é excelente justamente ali onde ela consegue, com competência, administrar a qualidade dos corpos que ela deseja transformar. E que transformação é essa que se deseja? (...) Respondendo a essa pergunta, o mesmo autor recorda Nietzche dizendo que “a universidade é uma fábrica para a produção de conhecimento e de técnicos a serviço das muitas burocracias da sociedade” e que “o que as escolas superiores na Alemanha realmente realizam é um treinamento brutal, com o objetivo de preparar vastos números de jovens, com a menor perda possível de tempo, para se tornarem usáveis e abusáveis a serviço do governo”. Nós diríamos: a serviço dos interesses do sistema e não para a felicidade deles.

O que fica sempre mais evidente é que há paradigmas usados, consciente ou inconscientemente, na avaliação e no debate tanto dos estudos sobre a juventude como dos trabalhos educativos que se realizam junto-com-para os jovens. É uma questão de fundo do qual não se escapa. Procurando abranger estas “intervenções” no mundo juvenil, podemos dizer que se apresentam, nestas práticas, quatro paradigmas:

a) a juventude como etapa preparatória. O jovem é encarado, prioritariamente, como alguém que necessita ser “preparado”. A expressão histórica mais evidente desta “intervenção” é o que se costumou chamar, a partir da revolução industrial, de “moratória social”, uma realidade pedagógica e legal que, na história, se mostrou de diversas formas, onde a atitude do “adulto” se resume em “controlar” esta força nova – chamada “juventude” - que vai emergindo. “Enquanto você não pensa que nem nós (adultos) você fica obrigado a isso ou aquilo porque você não está preparado para ser o cidadão ou a cidadã que nós desejamos”. Nesta linha pode caminhar a escola, o internato, o serviço militar, a definição de certa idade para assumir algumas responsabilidades, a maneira como se tratam, pedagogicamente, “movimentos” ou “organizações” etc. porque “você não está preparado”... As atividades oferecidas, por isso, estão voltadas para a “formação”, tendo os adultos como os protagonistas das “informações” ou, então, daquilo que, por vezes, se chama “educação”. Supõe-se que os jovens só têm a aprender e nada para ensinar; o mundo dos adultos já sabe tudo que precisamos saber. Por isso o discurso do jovem como o futuro da sociedade e o jovem não sendo considerado no presente porque não está “preparado”. Mesmo que se diga que todos precisam de “preparação”, o jovem é olhado como quem só precisa de “preparação” e não é capaz de revelar algo de novo. Para quem se posiciona neste paradigma, no fundo, tudo já está sabido; tudo já está feito; não há novidade que possa provir de alguém que “ainda não tem experiência”. Parece que só vale determinada experiência e que a experiência “mais nova” não vale ou não existe.

b) a juventude como etapa problemática. O jovem é encarado como “problema”. “Problema” porque gera conflitos, porque faz coisas erradas, porque não respeita a tradição, porque faz coisas que não dá para compreender, porque desrespeita normas etc. Fica bastante evidente, na história, que o jovem é apontado como o culpado de muita coisa “errada” que acontece na sociedade. O que se lê e o que se ouve é que o jovem é um problema. Olhando, contudo, obras literárias e artísticas, muitos discursos da sociedade, reivindicando coisas melhores e utopias, são discursos colocados, estranhamente, na boca dos jovens. É o caso, também, da Bíblia, é o caso das tragédias gregas, é o caso dos jovens no século 16 (mudança de paradigma) aonde os jovens, numa sociedade tonta antes os valores novos que vão surgindo, eram elevados a serem os verdadeiros tutores da ordem e da censura moral etc. Até em “Dom Quixote de la Mancha”, de Cervantes e seus pícaros, isso é real. Quem derrota Quixote, levando-o a abandonar as suas loucuras de cavaleiro andante, são dois jovens: uma moça chamada Dorotéia, através do encantamento e um jovem recém-formado em Direito, chamado Sansão Carrasco, através do enfrentamento. O jovem “problema” torna-se, estranhamente e ao mesmo tempo, o jovem “modelo”...

Mesmo hoje em dia - se a juventude é um problema - quem é o adulto que não deseja ser jovem? A quem recorre a sociedade de consumo para vender seus produtos? O jovem, assim como é o modelo que se busca (= reivindicação), é visto como a causa dos problemas (= acusação) e as atividades oferecidas para ele vão na perspectiva da “prevenção” dos problemas: drogas, DST, gravidez na adolescência, prisões especiais etc. Tudo se “instala” movido por um espírito de desconfiança nos jovens; tudo que se oferece, desde o lazer até a cultura, tem essa perspectiva de ocupar o tempo destes/as jovens para que não façam besteira. A conseqüência da vivência desse paradigma é que nem a escola, nem o lazer nem o trabalho sejam encarados como “eixos integradores”[11]. Não basta ter colégio, não basta ter espaços de lazer, não basta ter trabalho; todos esses “instrumentos” precisam ser eixos integradores das pessoas e da sociedade. Atrevendo-nos a olhar o mundo da educação com certo senso de desconfiança um tanto radical, poderíamos perguntar-nos: Qual o diretor de “nossos” colégios não reconhece que, de fato, a educação-educação, a educação encarada além da “informação”, em suas instituições, não se dá, realmente, nas salas de aula, mas fora dela, isto é, nos “desvios” da própria vida escolar, levando – muitas vezes – a uma rendição da “educação” desejada pela “informação” sempre mais impulsionada?

Numa linguagem mais sarcástica – que tem suas tristes verdades – podemos dizer que esse “paradigma” de olhar, estudar e trabalhar com jovens não respeita e não ama, de fato, o jovem. Poder-se-ia dizer, até, que se foi levado a ter medo da juventude e não a estar encantado por ela, nos desafios que nos lança.

c) a juventude como potencial ou revolucionária. Conforme este paradigma, olha-se a juventude como fonte de renovação: um segmento da sociedade capaz de transformar o mundo. O exemplo histórico que encarna, de algum modo, esse paradigma é a forma como o fascismo de Mussolini foi capaz de olhar a juventude nas décadas de 1920 e 1930[12]. Olha-se a juventude como solução; quer-se uma juventude articulada e organizada, movida pela questão social e pelo dinamismo político; uma juventude que seja um discurso para o todo da sociedade, encarnando a utopia e o sentido do país, inclusive com uma sexualidade orientada para a procriação. Tudo isso discutido por filósofos, políticos, artistas e intelectuais. Nesta perspectiva responsabilizam-se os/as jovens pelas mudanças na sociedade e colocam-se, nos ombros deles/as, a responsabilidade das transformações sociais.

Não é por nada que, no Brasil de Getúlio Vargas, em 1937, quase se implantava a “juventude brasileira” moldada nas experiências européias da Alemanha e da Itália a partir do Ministério do Exército, da Educação e da Justiça... De forma um tanto romântica, o futuro se concentra na juventude, movidos por interesses e não pela valorização do jovem como tal. A Conferência Episcopal Latino-Americana, em 1968 (há 40 anos)– talvez um pouco inspirada neste paradigma - falava, por isso, da juventude como “força de pressão social”, encaminhando decisões que olhavam a juventude, na ótica desse paradigma.

d) a juventude como sujeito de direitos, no caminho da autonomia. É um paradigma que aposta na formação da juventude em sua personalidade, através de uma pedagogia que considera todas as dimensões da pessoa, inclusive a teológica. É o paradigma que custou a aparecer, mas que se expressa, por exemplo, de alguma forma, no documento recente dos bispos do Brasil intitulado “Evangelização da Juventude: desafios e perspectivas”. Este paradigma deseja partir daquilo que constitui a felicidade (= realização) do jovem. É levado por um “credo pedagógico” que se traduz na valorização grupal, na importância da organização, no trabalho com os diferentes “tipos” de jovens, na formação integral e na importância do que chamam de “acompanhamento”, dando lugar privilegiado à elaboração do projeto de vida e ao método da experiência ou da necessidade de partir da realidade. Em vista disso, um instrumento que se torna fundamental é o planejamento do trabalho com e dos jovens. Um outro aspecto que não pode ser esquecido é a implementação de políticas públicas de-com-para os jovens. Não se deixa levar nem pelo espiritualismo, nem pelo psicologismo nem pelo politicismo, mas deseja fomentar uma pedagogia que tome em conta, realmente, todas as dimensões da pessoa humana, presentes, latentes e vivas em corpos juvenis. Uma palavra decisiva que é assumida, então, é “protagonismo” ou, então, empoderamento, autonomia, emancipação.

Conclusão 1

Esses paradigmas de compreensão do fenômeno juvenil manifestam-se em muitos campos, principalmente quando está em jogo o relacionamento vívido de adultos e jovens. Por que demorou tanto o aparecimento significativo de “movimentos juvenis” na história? Está em questão, igualmente, todo o trabalho educativo dos jovens através das escolas e colégios. É dramático encontrar Congregações e outras entidades que se dedicam à educação da juventude como carisma (uma delas tinha, no século XVII, mais de 500 colégios sob a sua responsabilidade) que, nos seus documentos normativos e pedagógicos, não falem quase nada de juventude. É que os “alunos”, além de não serem encarados como “jovens”, só têm a aprender e nada a ensinar. É questão de paradigma...

O estudo da emergência e da percepção de novos valores na juventude inscreve-se, igualmente, numa dessas leituras, feita pelas pessoas e instituições. Aliás, estes paradigmas estão na rua e já estão sendo adotados, consciente ou inconscientemente, por pessoas, instituições, escolas, Universidades, movimentos, secretarias de juventude em todos os níveis. Como filósofos e educadores, toca-nos estarmos atentos e posicionar-nos desejando que o casamento de nossos dois “entes” (educação e protagonismo) se torne realidade em toda a parte. É possível se, por parte do educador e da educadora, houver encanto alimentado pela novidade inquieta e incômoda que vem do jovem e da sábia vontade de construir felicidade num mundo sadio onde jovens e educadores aprenderam a caminhar juntos.


Conclusão 2

A reflexão sobre a emergência ou a percepção de novos valores na juventude é um desafio para os educadores e para toda a sociedade. Não significa que o novo nasce do velho, mas que muito do que a juventude manifesta é um sintoma daquilo que ela vê e não vê. Poderíamos concluir, até, que a juventude é o que é a sociedade. O desafio é aprendermos a ler as sementes ocultas do Verbo... Toca a todos aprender o discurso ou os discursos juvenis que estão em toda a parte. Enquanto os educadores e a sociedade não aprender a lição dos “desviantes” que despontam como “figuras da desordem” ela está fadada a se repetir em seus erros e caminhar para a própria destruição. Assim como os dados concretos de uma pesquisa nos desacomodam, recordamos que o maio de 1968 ainda não morreu, fazendo-nos relembrar que a revolução cultural é mais importante do que, talvez, imaginamos. Vimos, também, que na visão da juventude e no trabalho com ela somos convidados a termos clareza do paradigma que escolhemos para termos como objeto de estudo e de intervenção não só no mundo juvenil, mas na sociedade que sonhamos. Os valores não estão somente emergindo; eles também dependem de nossa capacidade de percepção.
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Notas
[7] Entre as muitas leituras, é agradável ler o que HOBSBAWN escreveu em “Tempos Interessantes – uma vida no século XX”. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 274-291.Outro artigo do mesmo autor é “Maio de 68 – o ano em que os profetas falharam”, publicado pela “Folha de São Paulo” em 1998.
[8] Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
[9] Na história da Igreja Católica, no Brasil, um fato intrigante é que – quando em todo o mundo a juventude subia ao púlpito para reclamar contra diferentes formas de velhice da sociedade – a hierarquia declara a morte da Ação Católica Especializada encarnada nas organizações específicas denominadas JAC, JEC, JIC, JOC e JUC, as primeiras expressões significativas de organização das juventudes numa dimensão de fé comprometida com a realidade social e política.
[10] Uma leitura esclarecedora se encontra em Mário MARGULIS e Marcelo URRESTI em “La juventud es más que una palabra”, 2ª ed. Buenos Aires: Biblos, 2000, p. 13-30.
[11] GALAND, Olivier. “Les jeunes et l´exclusion”. Paris: Éditions La Découverte, 1996.
[12] Veja-se o artigo de Luisa PASSERINI intitulado “A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950” in “História dos Jovens” v. 2 São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 319-382.

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